Vocês
sabem quando um livro te ganha logo na sinopse? Pois então, foi esse o caso com
Ritos de Adeus.
Um
belo dia eu estava no Twitter quando vejo um tweet da Globo Livros dando um
link para a sinopse do livro no site da editora. Eu li aquelas poucas linhas
que descreviam a história e no mesmo instante tive a urgência de ler aquele
livro. Algo em mim gritava que eu deveria ler aquele livro.
Hannah
Kent é uma jovem australiana que fez intercâmbio na Islândia, e lá conheceu a
história de Agnes Magnúsdóttir,
a última mulher a ser condenada à morte no país, em meados do século XIX. Ficou
tão fascinada com o caso que resolveu escrever esse romance, que é ficcional,
porém fortemente baseado em fatos reais.
Agnes fora acusada e
condenada como assassina, por ter cometido um crime brutal e imensuravelmente
cruel. Fora condenada a morte. Porém, antes de a sentença ser cumprida, ela
deveria ficar confinada em uma fazenda, junto a uma família, onde receberia
apoio espiritual para se preparar para sua morte. E a partir disso a história
começa.
E é uma história não
muito linear, que se enreda através dos sentimentos conflitantes das pessoas
que se vêem obrigadas a conviver com Agnes, das memórias da própria Agnes, que
se torcem e se retorcem, em amargura, ressentimento e medo, muito medo. Assim
como nas reproduções de documentos oficiais da época, cartas, depoimentos e
retalhos da cultura popular daquele período que ajudaram a criar a imagem
mistificada de Agnes e sua história.
Então, de certa forma,
Ritos de Adeus serve como um romance biográfico (mesmo que ficcional) que
transforma a imagem de Agnes Magnúsdóttir, dando-lhe um aspecto muito mais
humano, que foge dos estereótipos criados pela sociedade islandesa da época,
que a marcou como uma assassina fria e calculista, uma bruxa, um ser baixo e
desprezível.
Hannah nos conta,
através dos lábios e memórias da própria protagonista, uma história crua sobre
miséria, fome e a luta cotidiana pela sobrevivência em uma terra áspera e
implacável, onde o frio e a solidão são personagens tão vívidos quanto a
família de Kornsá ou o reverendo Tóti. Mas, ao mesmo tempo, a narrativa tem uma
beleza melancólica que contrasta de uma forma surpreendente com toda a crueza
da paisagem, que às vezes consegue ser tão deslumbrante e mágica quanto
assustadora. Esse cenário é também um personagem, podemos dizer. As cabanas
sujas e poeirentas feitas de turfa, o constante cheiro de mar, de urina e de
fezes de animais, de óleo de baleia, de fumaça dos braseiros alimentados por
estrume. A autora sabe usar com muito talento a sinestesia, transportando o
leitor para o ambiente descrito de uma forma muito mais intensa e marcante.
É um mundo onde a
tradição escandinava e a religiosidade fervorosa cristã fundem-se em um
sincretismo constante. Um mundo que parece ter parado no tempo, onde a vida era
uma eterna luta contra as intempéries do clima e as viradas das estações. Um
mundo que não conhece luxos e confortos. Uma existência que se encerra em si
mesma, mas que é abalada pela repentina chegada de uma monstruosa assassina.
A trajetória de Agnes é
uma ode ao feminismo. Todo o seu caminho pedregoso e tortuoso através da vida
foi ainda mais árduo e difícil pelo fato de ela ser uma mulher letrada, que
pensava por si mesma e não aceitava com docilidade qualquer coisa que lhe fosse
imposta. Uma mulher forte e de personalidade, em um mundo basicamente ainda
medieval como o da Islândia do século XIX, era algo de causar escândalo, uma
subversão, algo abominável. Uma das razões que a teriam levado a cometer crimes
tão bárbaros.
Mas na verdade, Agnes é
apenas uma mulher que quer amar e ser amada, de verdade, sem ser apenas uma
criada ou um objeto para saciar os desejos da carne do seu senhor. Agnes é uma
mulher que queria entender a vida muito além do cotidiano, das obrigações
básicas da sobrevivência; queria encontrar razões, dar um sentido a tudo
aquilo. Fugir do vazio desesperador da existência pacata e sem perspectivas.
Ela queria viver de verdade.
Em momento nenhum se
tenta defender Agnes de tudo; afirmar que na verdade ela era apenas uma vítima
do seu meio. Não, é tão mais do que isso. Como eu já disse, ela é mostrada como
humana, crível, de carne e osso e personalidade cinzenta. De uma forma ou de
outra, todos nós somos culpados de alguma coisa, seja essa coisa grande ou
pequena, impactante ou irrelevante. Mas nunca, nunca mesmo, somos cem por cento
isentos de alguma culpa. Culpa perante outras pessoas, ou ainda a culpa junto a
si mesmo. Agnes não é nenhuma heroína das sagas nórdicas, é uma mulher que sobreviveu
o quanto pode, assim como todos nós.
Hannah Kent estreou no
mundo literário com Ritos de Adeus. Tem algumas inconstâncias característica de
autores iniciantes, escolhas de palavras que parecem estranhas, cenas que
poderiam ter sido mais aprofundadas, e por aí vai, mas que não colocam o livro
em nenhuma má posição. Ela tem seu grande mérito na ambientação e na relação
dos personagens com esse ambiente impiedoso e brutal. Outro ponto muito forte é
a capacidade dela em descrever o medo e a angústia, o desespero de quem tem a
consciência de que a cada dia que passa a morte está mais próxima. As dúvidas e
os questionamentos, as revelações, as epifanias. Ela tem uma característica no
seu estilo de escrita que eu admiro muito: conseguir colocar muita informação e
sentimento em poucas linhas.
É uma estreia de peso, que mostra todo o
potencial que essa grota tem. E eu realmente espero que ela ainda produza muita
coisa no futuro.
Recomendo demais. Uma leitura que às vezes
pode ser um soco no estomago, mas que vale muito a pena.
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