quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Marco Polo - A Primeira Temporada




Vivemos todos sob a sombra dos que vieram antes de nós. E no futuro as pessoas viverão sob a nossa sombra. De uma maneira ou de outra, seja sob a sombra de nossos sucessos ou de nossos fracassos. É a sombra do legado.
Marco Polo dramatiza ficcionalmente as aventuras do explorador italiano do século XIII que desbravou o oriente e assombrou as cortes européias com as histórias de suas aventuras. Mas no fundo, o cerne desta fantástica produção original da Netflix é algo mais sensível e humano do que isso: é sobre legado.
Marco tenta viver a altura do legado da família Polo, que seu pai e tio cultivaram ao longo dos anos com viagens pelas rotas de comércio, juntando riquezas e histórias que engrandeceram tal nome. Da mesma forma vive o grande imperador mongol Kublai Khan, sob a sombra e o fantasma de Genghis e seus feitos heróicos que construiriam o maior império do mundo.
Esses dois personagens, de mundos tão distintos e distantes, com vidas e experiências tão diferentes um do outro, tem o norte da sua vida em corresponder as expectativas que seu nome traz consigo, ao mesmo tempo em que anseia criar algo seu, que marque seu nome na história e que jamais sejam esquecidos. É um medo, uma angústia, uma necessidade visceral que move impérios.
Esses elementos dos personagens ganharam vida na tela graças as grandes interpretações de Lorenzo Richelmy e Benedict Wong. Um Marco e um Kublai cheios de sombras, tonalidades e camadas, vivos e que causam simpatia. Marco precisa se adaptar para sobreviver, se provar leal e útil a cada dia que passa, tendo que muitas vezes ir contra suas convicções para não ser engolido pelo insaciável jogo da conspiração cortesã.
E Kublai é um personagem fantástico. Tão rico, profundo e perturbado. Ele é a representação de dois mundos colidindo, de duas heranças que não podem conviver em paz no mesmo espaço. Ele se espreme entre suas raízes mongóis duras e ásperas, de sangue impiedoso e conquistador, e o império cosmopolita e tolerante que seu avô Genghis e ele mesmo construíram, repleto de luxos e comodidades que o mongol das estepes não vê com bons olhos. E por isso que eu considero a melhor cena da temporada a qual Kublai, bêbado e desesperado, questiona uma antiga armadura de Genghis sobre porque ele não conseguira derrubar os muros de Xiangyang e conquistar toda a China, deixando para ele esse fardo.
O ótimo e sensível roteiro concebido por John Fusco é outro dos pontos que fazem desta série algo tão bom e relevante. Juntamente com um competente time de escritores, a história ganhou corpo e consistência narrativa, dosando o drama e ação de uma forma natural e intuitiva, que em momento nenhum soou forçado ou expositivo demais. As nuances dos personagens foram trabalhadas com cuidado e empenho, fazendo com que a trama trata-se de seus temos de forma tênue, quase subliminar, mas estando sempre ali a mostra e fundamentalmente presente.
Direção e fotografia também são aspectos de destaque. Os diretores souberam muito bem usar as paisagens exuberantes das locações para criar um cenário absolutamente convincente, que faz você realmente se sentir vendo a Mongólia e a China do século XIII. Nisso igualmente a equipe de ambientação histórica tem um mérito imenso, pois criaram cenários, roupas, festividades, banquetes, utensílios e acessórios tão cuidadosamente, que conseguiram uma perfeita experiência de imersão visual. Talvez existam discrepâncias históricas, não tenho muita certeza, mas acho que isso se torna irrelevante comparado a todos os outros pontos positivos da série. 
As motivações, ambições e sonhos dos demais personagens também são importantes. Cada um deles deseja seu próprio legado, cada um quer ter o seu lugar de importância, seja ele de fama, poder, influência ou mesmo sobrevivência. O príncipe Jingim se parece com Kublai, tentando ao máximo honrar seu sangue mongol, apesar de sua criação ter sido nos moldes chineses. Os filhos bastardos do Khan, guerreiros ou conselheiro, os servidores chineses, turcos, persas, indianos e todos os cantos do império. As prostituas e as concubinas. A imperatriz que é o porto seguro e o norte do Grande Khan. Os “hóspedes” da corte, eunucos, guardas e soldados. Todos eles com cor, vida e relevância.
E os inimigos chineses, claro. O Ministro Grilo e suas artimanhas que às vezes nos levam a arregalar os olhos como se estivéssemos vendo Game of Thrones.
Mas o meu personagem favorito é sem sombra de dúvidas Hundred Eyes, o mestre cego de Kung Fu que ensinou a Marco muito mais do que simplesmente sua arte marcial. O ensinou a sobreviver naquele corte, ensinou sabedoria, e tornou-se um improvável amigo e companheiro de importantes missões.
Enfim, essa é uma história que vai muito além da simples aventura. Tem drama, ação e paixão (inclusive, eu gostaria que os roteiristas de Game of Thrones vissem essa série para aprender a retratar nudez e sexo sem ser grosseiro e juvenil), traição, conspiração e muitas mortes e sangue. Mas o grande mérito reside mesmo nesses pequenos detalhes das personalidades dos personagens centrais e secundários. A sua busca por um legado, por sobrevivência e grandes realizações.
Da mesma forma que o desejo por uma “grande aventura” é algo inerente à natureza humana, esse sentimento de que é preciso sair da sombra dos que vieram antes de nós também é. Talvez até maior, e com certeza mais concreta e realizável.
Definitivamente uma das melhores produções lançadas em 2014. E eu espero que a segunda temporada seja tão boa quanto esta primeira.