Quando
se fala em Colômbia, instintivamente vêm à mente três coisas: café, Gabriel
García Márquez e cocaína (e Shakira também, pra ser bem honesto). Certo, eu
admito que isso soe bem tolo e um bocado estereotipado. Mas mesmo assim, é
preciso ser dito que todo estereotipo tem alguma verdade em si, e os fios da
ficção podem ser puxados aqui e ali cuidadosamente e com isso criar algo
verossímil e fantástico.
É
esse o caso de Narcos, uma das empreitadas mais recentes da gigante Netflix.
Logo
no primeiro episódio nos deparamos com um breve texto falando sobre o realismo
fantástico e sobre como ele só poderia ter surgido na Colômbia. Claramente uma
menção ao inesquecível Gabo e suas histórias mágicas e incrivelmente humanas,
onde o fantástico e o surreal surgiam em meio aos cenários mais banais e
mundanos. E isso é pego emprestado na série, que conta uma história tão
incrível e impressionante que realmente poderia ter acontecido somente na
Colômbia.
Trata-se
de uma história real costurada com
elementos de ficção, sobre a ascensão do maior traficante de cocaína de toda a
história e o império que ele construir com muito sangue derramado. Além disso,
também é sobre a caçada que as autoridades fizeram atrás dele durante mais de
uma década.
Mas
eu acho que seria muito injusto definir a série apenas como isso. Seria apenas
uma sinopse vazia. Não é uma série apenas sobre Pablo Escobar, ou sobre o
agente Murphy e a sua desconstrução de caráter ao longo dos anos ou apenas
sobre o problema do tráfico em si. Existe muito mais nisso, uma história que se
aprofunda no questionamento sobre o que é o poder e como ele transforma as
pessoas e as coloca diante de dilemas pesados e angustiantes.
Muito
se fala sobre a figura implacável e sanguinária de Pablo Escobar e sobre como
construiu seu insanamente lucrativo império. Ele seria um monstro, impiedoso e
que não mede conseqüências. De fato, ele fora tudo isso mesmo, não se pode
negar. Mas apesar disso, havia um ser humano por trás do monstro. E a série
muito cuidadosa em mostrar a jornada de transformação de Pablo, as suas
nuances, contradições e estranhos idealismos. Mesmo com todos os seus atos cruéis
e sanguinários, eu não tenho como não achar Pablo Escobar uma das
personalidades mais fascinantes do século XX.
O
espanhol de Wagner Moura pode não ser digno de um Miguel de Cervantes da vida,
mas eu realmente pouco me importo com isso, pois a atuação do brasileiro
transcendeu o simples fator lingüístico. Wagner encarnou o personagem com
maestria, transmitindo toda sua complexidade e pluridimensionalidade, de um
homem que transita confortavelmente entre o amoroso pai de família e amigo das
comunidades carentes e o sanguinário chefe do tráfico de cocaína que tem
basicamente controle sobre todo um país em suas mãos.
E
é nesse ponto que entra a questão da faceta transformada do poder. Pablo começa
sua jornada cheio de planos e ideais; parecendo que genuinamente quer fazer de
seu país um lugar melhor para o povo. Mas a quantia inacreditável de dinheiro
que conquista com o tráfico e o aumento exponencial de suas operações, acabam o
transformando em um sociopata manipulador e paranóico, e com o passar do tempo
essa se tornou a imagem com a qual ele foi vinculado para o mundo. De certa
maneira, Pablo criou um mundo alternativo para si mesmo, onde era deus e rei, e
sentava-se em um trono de dinheiro que o fazia intocável.
Intocabilidade
essa que no fim das contas o fez solitário. Sua megalomania o transformara em
alvo não só do governo colombiano, mas também dos Estados Unidos. Foi caçado de
todas as maneiras possíveis, e a cada escapada miraculosa ficava mais paranóico
e mais afastado da tranqüila vida que um homem de espírito mediano como ele no
fundo desejava.
Mas
como eu disse antes, Narcos não é apenas sobre Pablo. Toda a trama passeia
delirantemente entre as relações de poder nos mais diferentes níveis. Dos
traficantes, do exército, do presidente da Colômbia e muito da pesada e
influente mão do governo norte-americano. Pode-se dizer então que um dos motes
principais da série tem a ver com política e suas complicadas e perigosas
derivações.
Tudo
isso já é muito fascinante e prende a atenção do espectador por si só, mas a
produção consegue se elevar ainda mais com o seu toque documental que mescla
material original da época, como vídeos, fotos e artigos de jornal, com o que
foi feito para a série. Alie-se a isso os vários momentos onde a direção opta
por tomadas cheias de movimentos e balanços, com a câmera acompanhando a ação
com energia, passando um ar de curiosidade e tensão. E ainda por cima há a frieza com que os atos de brutalidade são retratados, de forma direta e impactante, sem adornos ou amenizações, apenas a velha e cruel realidade retratada com muito sangue, tiros, estupro e sem nenhuma meia medida. É a conhecida mão de José
Padilha fazendo o seu sempre muito competente trabalho.
Outra
coisa interessante de ressaltar é a enxurrada de informações e detalhes que é
passada ao espectador sobre o funcionamento assombroso do tráfico de drogas.
Sobre como a cocaína é produzida e distribuída, sobre como o dinheiro é
movimentado e escondido nos lugares mais improváveis, sobre as loucuras que os
chefes do tráfico fazem esbanjando toda essa montanha de dinheiro que eu eles
nem sabem como gastar. E também toda a rede de aliciamento e corrupção que um
negócio desses é capaz de criar, espalhando galhos e raízes em todas as direções. E isso é o realismo fantástico em sua essência mais genuína e que honra a tradição colombiana e latina do gênero. Gênero esse que conquistou e fascinou ma legião de fãs ao redor do mundo.
Então, eu acho que seja justo dizer que Narcos foi muito competente em mimetizar de maneira correta e coerente as dinâmicas e mecanismos do realismo fantástico e entregar um material muita qualidade, possivelmente uma das melhores produções do ano e que eu não acho nenhum absurdo pleitear alguns prêmios na próxima temporada de premiações.
Enfim, uma série que talvez não seja totalmente brilhante e impecável, mas que é com certeza de muitos méritos e vale demais a pena ser assistida. É compacta, tem só 10 episódios, e pode ser vista tranquilamente em um final de semana. Confira!
P.S. - Um beijo pra Luisa, que viu um pedaço da temporada comigo s2