A segunda
temporada de True Detective não agradou a maioria dos fãs que se apaixonaram
pela série com sua primeira temporada praticamente irretocável. Eu, por outro
lado, adorei esta segunda temporada, mas entendo perfeitamente quem não gostou.
Foi uma história muito mais pesada e densa, mais obscura e sufocante, onde os
personagens se viram arrastados a um jogo ao qual eles já haviam perdido antes
mesmo de começar. Foi difícil de engolir, teve um sabor muito amargo. Muita
gente não se atrai por esse tipo de história (o que não tem nada demais,
diga-se de passagem, cada é livre para gostar ou não do que bem entender), mas
outras pessoas, como eu, sentem certo tipo de atração por histórias quase
mórbidas como essa.
Depois da
primeira temporada da série, eu fiquei muito interessado pelo trabalho
literário de Nic Pizzolatto. Escasso, bem verdade, mas muito relevante. Uma
coleção de contos e um romance. O primeiro eu até hoje não achei e-book para
baixar, e o segundo nunca conseguira me motivar realmente a ler em forma
digital. Até que a editora Intrínseca trouxe Galveston para o Brasil, algo pelo
qual eu sou muito grato.
Logo nas
primeiras páginas do livro nota-se a estreita relação entre o Nic Pizzolatto
roteirista de televisão e o Nic Pizzolatto escritor. São dois universos
absolutamente simbióticos, que dividem muitos elementos, se cruzam e se
sobrepõe a todo o momento. Nic tem personalidade, tem estilo, ele soube
absorver o ambiente no qual ele nasceu e cresceu e traduzi-lo de forma intensa
e verdadeira, sem floreios ou meias-medidas. Uma obra bruta sobre um mundo
bruto.
Eu comecei a ler Galveston quando a segunda
temporada de True Detective já estava em andamento. Naquele momento eu já
estava fascinado com a temporada e seu tom claustrofóbico e com algo de suicida,
e a leitura de Galveston me fez ter uma visão completamente nova e mais
abrangente daquilo tudo que eu estava vendo. A intensidade e amargura do drama
se exponenciaram, o peso implacável de uma vida cheia de escolhas ruins e as
muitas mentiras que contamos para nós mesmos na tentativa desesperada de
provarmos que somos pessoas boas. Tudo ali, claro e reluzente em meio à
penumbra de um bar decadente, com sabor de uísque e cigarro na boca e uma
hipnótica trilha sonora no fundo.
O livro segue
a história de Roy Cady, um matador de aluguel texano que trabalha para a máfia
polonesa em Nova Orleans, partindo do momento em que ele descobre que tem
câncer no pulmão. Ele é um sujeito endurecido, com quem a vida foi
especialmente cruel e sem pudor algum se considera um homem mau. Um tipo muito
comum no sul dos Estados Unidos, com a diferença que ele não tenta enganar-se
com mentiras baratas e se afogar em autopiedade, mas sim com bebida.
Após quase ser
assassinado em uma emboscada planejada por seu chefe, Roy sai em uma viagem pela
Luisiana e Texas na companhia de uma jovem prostitua que teve o azar de estar
no lugar onde ocorreu o banho de sangue. Essa dupla improvável transita por
rodovias movimentadas, bares interioranos cheios de gente sem expectativa nenhuma
na vida e motéis sujos e baratos. Acabam parando em Galveston, uma cidade
costeira do Texas que traz memórias tristes para Roy.
Essa é uma
história simples, contada em primeira pessoa em uma maneira que fica parecendo
uma metalinguagem, como se Roy a estivesse contando para si mesmo no fim da
vida. O vai e vem temporal alternando o tempo da viagem de Roy e da garota e o
futuro é intrigante, Nic dosa perfeitamente a quantidade de informação que dá
ao leitor, deixando quase até o fim o suspense sobre como aquilo tudo terminou.
Essa também,
assim como na série, é muito mais uma história sobre pessoas do que
necessariamente sobre um caso ou algum acontecimento proeminente que ao redor
do quais os personagens orbitem. Pessoas castigadas por um mundo inclemente,
com sonhos e ambições frágeis que podem ruir a qualquer instante, vítimas de
sistemas ineficientes e sobrecarregadas pelo peso de todas as escolhas que
fizeram ao longo da vida, das boas e das ruins, cheias de vícios e fraquezas,
mas que também conseguem tirar força e determinação dessas mesmas falhas.
Pessoas reais, de carne e osso, que sangram, sofrem e choram. Uma história que
começa com uma promessa, que só foi cumprida vinte anos depois.
Observar tudo
isso em Galveston me fez mergulhar ainda mais no negrume existencial dos
personagens da segunda temporada de True Detective e entender melhor a
diferença essencial entre as temporadas. A primeira temporada foi construída em
cima de um delírio noir místico, embebido e curado com Lovecraft e Robert W.
Chambers, movido pela força motriz da obsessão. Já a segunda transpira Raymond
Chandler e o noir clássico, com algum toque de David Fincher e Tarantino, muito
mais duro e realista do que delirante (mesmo que pequenos ensejos de delírio
apareçam aqui e ali, muito bem pontuados em seus dados momentos).
Rust encarava
a vida com desdém niilista e suas divagações filosóficas e Marty com a armadura
das falácias hipócritas de sua vida familiar perfeita. Já os personagens
centrais da segunda levavam suas vidas com um pessimismo mais cotidiano e
mundano, regado com álcool e violência, além de mentiras nas quais,
aparentemente, só eles acreditavam.
Eu acredito
que as duas histórias tenham a mesma essência apesar dessas abordagens tão
distintas. O cerne continua o mesmo, a mesma aspereza, a mesma amargura e
solidão, o medo do mundo sombrio que nos cerca. O estilo de Nic Pizzolatto.
E ele foi
chamado de “pretensioso” por alguns resenhistas, o que pessoalmente me soa um
absurdo. Certo, eu concordo que ele tomou algumas decisões questionáveis nessa
temporada (como quatro protagonistas, que realmente deixou a narrativa um pouco
cheia demais), mas eu não acredito que isso o torne pretensioso, afinal talvez
seja melhor tropeçar e aprender com um erro desses do que se acomodar com algo
simplista demais e “garantido” segundo os padrões televisivos.

A HBO ainda
não definiu o futuro de True Detective, o que me deixa bastante angustiado,
pois desejo muito uma terceira temporada para ver o que Nic nos apresentaria
agora, mais experiente e testado após esses pequenos erros da segunda
temporada. Mas uma parte de mim considera que não seria mau negócio a série ser
cancelada, porque dessa maneira ele estaria livre para voltar com tudo à
literatura, e dar continuidade ao que começara com o excelente Galveston.
Eu acredito no
talento dele, e a partir de agora, o que vier com certeza será lucro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário