terça-feira, 18 de agosto de 2015

Galveston, True Detective e Nic Pizzolatto



A segunda temporada de True Detective não agradou a maioria dos fãs que se apaixonaram pela série com sua primeira temporada praticamente irretocável. Eu, por outro lado, adorei esta segunda temporada, mas entendo perfeitamente quem não gostou. Foi uma história muito mais pesada e densa, mais obscura e sufocante, onde os personagens se viram arrastados a um jogo ao qual eles já haviam perdido antes mesmo de começar. Foi difícil de engolir, teve um sabor muito amargo. Muita gente não se atrai por esse tipo de história (o que não tem nada demais, diga-se de passagem, cada é livre para gostar ou não do que bem entender), mas outras pessoas, como eu, sentem certo tipo de atração por histórias quase mórbidas como essa.

Depois da primeira temporada da série, eu fiquei muito interessado pelo trabalho literário de Nic Pizzolatto. Escasso, bem verdade, mas muito relevante. Uma coleção de contos e um romance. O primeiro eu até hoje não achei e-book para baixar, e o segundo nunca conseguira me motivar realmente a ler em forma digital. Até que a editora Intrínseca trouxe Galveston para o Brasil, algo pelo qual eu sou muito grato.
Logo nas primeiras páginas do livro nota-se a estreita relação entre o Nic Pizzolatto roteirista de televisão e o Nic Pizzolatto escritor. São dois universos absolutamente simbióticos, que dividem muitos elementos, se cruzam e se sobrepõe a todo o momento. Nic tem personalidade, tem estilo, ele soube absorver o ambiente no qual ele nasceu e cresceu e traduzi-lo de forma intensa e verdadeira, sem floreios ou meias-medidas. Uma obra bruta sobre um mundo bruto.
 Eu comecei a ler Galveston quando a segunda temporada de True Detective já estava em andamento. Naquele momento eu já estava fascinado com a temporada e seu tom claustrofóbico e com algo de suicida, e a leitura de Galveston me fez ter uma visão completamente nova e mais abrangente daquilo tudo que eu estava vendo. A intensidade e amargura do drama se exponenciaram, o peso implacável de uma vida cheia de escolhas ruins e as muitas mentiras que contamos para nós mesmos na tentativa desesperada de provarmos que somos pessoas boas. Tudo ali, claro e reluzente em meio à penumbra de um bar decadente, com sabor de uísque e cigarro na boca e uma hipnótica trilha sonora no fundo. 




O livro segue a história de Roy Cady, um matador de aluguel texano que trabalha para a máfia polonesa em Nova Orleans, partindo do momento em que ele descobre que tem câncer no pulmão. Ele é um sujeito endurecido, com quem a vida foi especialmente cruel e sem pudor algum se considera um homem mau. Um tipo muito comum no sul dos Estados Unidos, com a diferença que ele não tenta enganar-se com mentiras baratas e se afogar em autopiedade, mas sim com bebida.
Após quase ser assassinado em uma emboscada planejada por seu chefe, Roy sai em uma viagem pela Luisiana e Texas na companhia de uma jovem prostitua que teve o azar de estar no lugar onde ocorreu o banho de sangue. Essa dupla improvável transita por rodovias movimentadas, bares interioranos cheios de gente sem expectativa nenhuma na vida e motéis sujos e baratos. Acabam parando em Galveston, uma cidade costeira do Texas que traz memórias tristes para Roy.
Essa é uma história simples, contada em primeira pessoa em uma maneira que fica parecendo uma metalinguagem, como se Roy a estivesse contando para si mesmo no fim da vida. O vai e vem temporal alternando o tempo da viagem de Roy e da garota e o futuro é intrigante, Nic dosa perfeitamente a quantidade de informação que dá ao leitor, deixando quase até o fim o suspense sobre como aquilo tudo terminou.
Essa também, assim como na série, é muito mais uma história sobre pessoas do que necessariamente sobre um caso ou algum acontecimento proeminente que ao redor do quais os personagens orbitem. Pessoas castigadas por um mundo inclemente, com sonhos e ambições frágeis que podem ruir a qualquer instante, vítimas de sistemas ineficientes e sobrecarregadas pelo peso de todas as escolhas que fizeram ao longo da vida, das boas e das ruins, cheias de vícios e fraquezas, mas que também conseguem tirar força e determinação dessas mesmas falhas. Pessoas reais, de carne e osso, que sangram, sofrem e choram. Uma história que começa com uma promessa, que só foi cumprida vinte anos depois.
Observar tudo isso em Galveston me fez mergulhar ainda mais no negrume existencial dos personagens da segunda temporada de True Detective e entender melhor a diferença essencial entre as temporadas. A primeira temporada foi construída em cima de um delírio noir místico, embebido e curado com Lovecraft e Robert W. Chambers, movido pela força motriz da obsessão. Já a segunda transpira Raymond Chandler e o noir clássico, com algum toque de David Fincher e Tarantino, muito mais duro e realista do que delirante (mesmo que pequenos ensejos de delírio apareçam aqui e ali, muito bem pontuados em seus dados momentos).
Rust encarava a vida com desdém niilista e suas divagações filosóficas e Marty com a armadura das falácias hipócritas de sua vida familiar perfeita. Já os personagens centrais da segunda levavam suas vidas com um pessimismo mais cotidiano e mundano, regado com álcool e violência, além de mentiras nas quais, aparentemente, só eles acreditavam.
Eu acredito que as duas histórias tenham a mesma essência apesar dessas abordagens tão distintas. O cerne continua o mesmo, a mesma aspereza, a mesma amargura e solidão, o medo do mundo sombrio que nos cerca. O estilo de Nic Pizzolatto.
E ele foi chamado de “pretensioso” por alguns resenhistas, o que pessoalmente me soa um absurdo. Certo, eu concordo que ele tomou algumas decisões questionáveis nessa temporada (como quatro protagonistas, que realmente deixou a narrativa um pouco cheia demais), mas eu não acredito que isso o torne pretensioso, afinal talvez seja melhor tropeçar e aprender com um erro desses do que se acomodar com algo simplista demais e “garantido” segundo os padrões televisivos. 

Eu penso que Nic é um dos nomes mais interessantes do noir contemporâneo, seja na televisão ou na literatura. Ele consegue com muita habilidade reproduzir as mecânicas clássicas do estilo e ao mesmo tempo molda-las ao século XXI e a modernidade, usando os cenários e vários personagens secundários como um grande trunfo, que garante fidelidade e identificação. Eu honestamente não faço a menor idéia de o termo neo-noir se aplica à literatura, mas no caso de sim, Nic Pizzolatto poderia ser considerado um expoente nesse gênero.
A HBO ainda não definiu o futuro de True Detective, o que me deixa bastante angustiado, pois desejo muito uma terceira temporada para ver o que Nic nos apresentaria agora, mais experiente e testado após esses pequenos erros da segunda temporada. Mas uma parte de mim considera que não seria mau negócio a série ser cancelada, porque dessa maneira ele estaria livre para voltar com tudo à literatura, e dar continuidade ao que começara com o excelente Galveston.
Eu acredito no talento dele, e a partir de agora, o que vier com certeza será lucro. 


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